sábado, 16 de agosto de 2008

O dia dos pais


Seria um fim-de-tarde qualquer em uma rua qualquer, não fosse aquele corpo caído na sarjeta. Da boca seca escorria um marca de vômito que marcava o casaco azul, a calça cinza e o sapato preto sem meias.

Boca aberta no meio-fio denota gravidade, e logo vieram os bombeiros com suas sirenes de urgência. Ele não está morto e se recusa a se deitar na maca. Ele rodopia, ele ri, ele chora. Ele evita os primeiros socorros e começa o seu discurso etílico: línguas de fogo. Os rapazes do bar se aproximam. Uns fumam, outros ainda bebem.

Bêbado só dá vexame. Bêbado é um estorvo. Perdão pelo vocabulário, mas bêbado é foda. O bêbado na sarjeta é o alívio daquele que não bebeu tanto assim, e por isso, se dá o direito a mais um copo. Para os bombeiros, o bêbado é apenas uma ocorrência, um procedimento a seguir: medir pressão, freqüência cardíaca, aplicar soro e glicose, seguir para o hospital, mais um relatório a preencher. O bêbado revida e nas idas e vindas, um sapato já saiu de seu pé. Ele acha que está perto da Bastilha, ele diz que mora em Rive Gauche. Ele diz que está bem mas cambaleia para um lado e para o outro, e solta o peso do corpo sobre o bombeiro. O bêbado é um palhaço, e ele sabe disso. Ao seu entorno, uma roda se forma de gente que se entretém com a humilhação alheia e se esquece do tempo que passa igual em todo final-de-tarde.

Na subida da rua ao lado, uma garota aponta de bicicleta. Na cestinha está sua bolsa de pano vermelho que combina com sua blusa de lã, aberta, de botões. Ela tem cabelos lisos e olhos pretos como as sandálias bailarinas que usa sem meias. Seu vestido florido bege sobe suavemente a cada pedalada deixando à mostra bom naco de suas rosadas pernas devidamente depiladas. Ela seguiria seu caminho, mas um pequeno detalhe na aglomeração lhe chamou a atenção:

- PAPA!

O rapaz que bebia volta ao bar, o senhor que fuma apaga o cigarro, o transeunte segue seu trajeto. A senhora que ria com a baguete na mão vira de lado ajeitando os cachos do cabelo. A roda se dispersa.

Pai é herói. Pai dá exemplo. Perdão pelo vocabulário, mas pai tem que ser sempre o fodão. O senhor da sarjeta diz que está bem em voz sóbria e põe-se de pé. Mas tomba logo para o lado direito, esbarrando no bombeiro.

- De novo, papa! De novo...

Pai protege. "Não chora, ...". O lema da República: "liberdade, igualdade e fraternidade". Fraternidade... o bom moço de óculos que carregava arquivos verdes empurra a bicicleta. O senhor que fumava traz o sapato esquecido na sarjeta, o rapaz forte equilibra o senhor de casaco azul que consola a menina, e juntos seguem rua abaixo.

- Pourquoi, papa? Porquoi...

O burburinho desceu a rua, o bombeiro foi embora de sirene desligada. No primeiro vento, folhas secas cobriram o vômito no chão. E os transeuntes que agora passam apenas passam. No bar ouviu-se o sentimental dizer que os semáforos se alternavam melancólicos. O moralista, pelo contrário: "bem feito!". Mas a verdade, se isso existe, é que o semáforo é uma máquina e se alterna ainda hoje igual, tal qual como antes.

Um comentário:

iglou disse...

Com o perdão da palavra: que foda!