terça-feira, 11 de novembro de 2008

Alma-Marceau: a viagem de Maura

E a moça sorri do outro lado do vidro, estendendo duas folhas ao rapaz que as toma e segue para uma das cadeiras da sala.

- Por favor, senhor, preencha estes formulários e retorne sem pegar fila.

À espera, uma senhora ao lado corta a frente dos demais.

- Por favor, para renovar o passaporte o que é necessário? Eu tenho uma viagem marcada...
- Quando você viaja?
- Hoje. Eu estava no aeroporto e fui barrada. Meu passaporte está vencido.
- Mas olha, você precisa fazer um pedido de renovação. E isso leva alguns dias...
- Mesmo em caso de morte?

Morte. Palavra forte. Na sala todos que a ouviram pararam de conversar. Silêncio. A atendente pede licença ao rapaz que atendia - attendez un peu, s'il vous plaît - e dirige-se ao outro guichê, vazio, onde a senhora se senta.

- Neste caso, podemos emitir-lhe uma autorização, e a senhora viaja hoje mesmo, tá?
- Tá.
- Aguarde um pouquinho que já volto.

Ela vai até o armário e volta com dois formulários.

- Agora é só preencher, colar uma foto que você pode tirar naquela máquina ali e voltar aqui com uma cópia de documento seu, sem pegar fila.

O rapaz volta ao guichê e entrega os formulários preenchidos.

- Ótimo. Aguarde apenas que já te dou o seu recibo.

Recuando um pouco, apóia-se no balcão e relaxa o corpo, ao lado de uma senhora que segura duas folhas brancas.

- Moço... você pode me ajudar?
- Sim, claro.
- É para preencher os formulários.
- Sim, - diz ele examinando as duas folhas - mas não há muito o que fazer. São apenas informações pessoais... aqui é o nome, aqui a data de aniv...

A senhora se aproxima mais um pouco, voz baixa, face rubra:

- Eu não sei ler.

Ele entendeu agora o seu desconforto e sentiu vergonha também: tivera talvez as oportunidades que ela não teve; talvez uma destas questões de tempo e local de nascimento que não se escolhe. Mesmo assim, ela seguira seu caminho e estava ali, tal como ele.

- Faz tempo que a senhora está aqui?
- Muito tempo, muito tempo...

Folha branca sobre o balcão.

- Nome?
- Maura Célia de Jesus Bastos. Olha - na mão um registro de identidade - aqui estão minhas informações.
- Marcelo Bastos... esse é seu nome do seu pai, correto? Bom... é... por favor, minha senhora... não chore... - ele vai até seus pertences e volta com lencinhos de papel - para a senhora.
- Obrigado.
- Dulcinéia de Jesus Bastos. Sua mãe, né?
- Sim.
- Nome do marido?
- Ah, eu não sou casada.
- Profissão?
- Dona-de-casa.

Curioso: se ela não é casada, como pode ser dona-de-casa?

- Menagère, né?
- Isso. Dona-de-casa. Menagère...
- Está aqui. Agora só falta a senhora assinar.

Ela toma a caneta, acerta o óculos, papel sobre o balcão. Mão direita espalmada sobre a folha enquanto a esquerda esconde os traços azuis que agora aparecem do outro lado: "Maura Célia de Jesus Bastos".

- Bom, aqui está a outra cópia, é só assinar também. Boa viagem para a senhora, e... bom... não há muito o que dizer, mas... bom... mantenha a calma e faça boa viagem...
- Muito obrigado, muito obrigado! - abraço forte.

- Senhor, o seu comprovante - a moça sorridente no guichê.
- Muito obrigado.

Já na rua, notou que a camisa ficara marcada com um traço úmido, que alguns minutos depois, secou.

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